quinta-feira, 24 de abril de 2008

Roraima na visão de Sebastião Nery

Uma raposa mineral

A tarde linda, toda azul, voava em um avião azul, como na canção cearense. De Manaus a Boa Vista, em Roraima, uma hora e meia sobre a floresta verde, muito verde, lá em cima o céu azul e lá embaixo um colchão infinito de mata densa e verde, verde escuro.

Nem casas, nem homens, nem estradas. Apenas uma estrada. Casas, raríssimas. Fazendas, três só e a pista ao lado da casa, como se fosse um quintal. E os rios, como jibóias infinitas, enroscando, enrolando, desenrolando, escorregando seus quilômetros de corpo líquido.

Se o avião descesse ali, seria um mergulho no oceano verde, para nunca mais. Entre o céu e o chão, o avião pairava soberbo, como um pássaro perdido naquele mundo sem fim. Mas ele foi chegando, chegou. Acabou de repente a floresta tropical, ficaram atrás as montanhas espetadas no céu e, como por milagre, apareceu um prato imenso, aberto, solto, limpo, vazio. Era Roraima. Roraima não é Amazônia. Roraima é o Lavrado.
Roraima

O Lavrado, só sabe quem vai lá. É um cerrrado sem árvore, savana sem neve, caatinga sem lajedo, campo geral sem mato ralo, sertão sem Guimarães Rosa. A grama fraca, frágil, desnutrida, não dá a um palmo de chão. Ela, só, não alimenta boi, nem cabra, nem bode. Os animais são poucos, porque não há bicho sem árvore e no Lavrado não há árvore.

São 240 mil quilômetros quadrados, redondos, como um queijo amarelado, mais para verde do que para amarelo: o Lavrado. Roraima é um imenso disco entre montanhas, a 90 metros acima do nível do mar. Logo ali, as montanhas da Amazônia brasileira ou venezuelana ou guiana, todas acima de 1.000, 1.500 metros: monte Caburaí, serra Pacaraima, serra Parima.

O monte Roraima, 2.272 metros, no extremo norte, é uma nave espacial parada: um pedaço do Brasil, outro da Venezuela, outro da Guiana. Nele nascem quatro rios. Lá em cima, o platô. E o lago Caracarana? No centro do Lavrado, iluminado ao sol. Algum deus deve tomar banho ali.
Índio e arroz

De Manaus a Boa Vista, 790 quilômetros de estrada, a BR 174, cuidada pelo Exército. De Boa Vista a Santa Elena, na Venezuela, mais 300 quilômetros, que eram barro puro, asfaltados nos governos Collor e Itamar. A partir de Santa Elena, 1.400 quilômetros até Caracas, no asfalto.

Fui lá pela primeira vez há 20 anos, dezembro de 1988. Ia para as eleições presidenciais da Venezuela, resolvi entrar por terra, através de Boa Vista até Santa Elena, depois cortando o rio Orinoco, o Amazonas deles.

Aquele prato sem fim de Roraima é uma das regiões mais ricas do mundo, uma terra feita de ouro, diamantes, inclusive a ponta norte, a Raposa Serra do Sol. Quando você ouvir que na Raposa Serra do Sol há uma briga de 18 mil índios contra 6 arrozeiros (plantadores de arroz), não acredite. A briga é pelo que está embaixo do chão: uma Raposa Mineral.
Boa vista

Desci no aeroporto de Boa Vista, comecei a olhar aqueles rostos queimados, duros, olhos faiscando. O avião já estava cheio deles. Roraima estava sendo invadida por uma fantástica massa de garimpeiros do Maranhão, Ceará, Piauí, Venezuela etc., em busca de ouro, diamantes.

Na fila do táxi, a corrida pela vida. Ninguém fazia fila, não havia fila. O motorista olhava a cara, imaginava o ouro ou o dinheiro que podia ter, escolhia, levava. Não adiantava reclamar. A fila era do ouro.

Cheguei ao hotel da Praia, o melhor da cidade sem mar, não havia vaga. Fui ao segundo, ao terceiro, a todos. O ouro havia lotado tudo. Voltei ao hotel da Praia. Uma mulher, atrás de uma mesa, contava dinheiro. Um metro de dinheiro de um lado, um metro de dinheiro do outro. Me disse:

- Moço, pegue sua moça e vão dormir os dois em um motel. É a única chance de hospedagem nesta sexta-feira, neste fim de semana. Tem um bom. Se não, vocês vão acabar dormindo no banco do jardim.

E deu o endereço. A suíte principal tinha um luxo: a TV. Só pegava a Globo. E uma rádio local, com um só programa nacional: a"Voz do Brasil".
Garimpos

Antes de pegar o ônibus para Ciudad Bolivar, às margens do Orinoco, a primeira etapa da longa travessia da Venezuela de ponta a ponta, passei pelo aeroporto. Para chegar ao ouro, aos diamantes, só de avião. Um mínimo de uma hora de avião. O aeroporto sempre apinhado de aviõezinhos pequenos, minúsculos, branquinhos, como pombos. Centenas.

Todo dia caía um ou mais. Dois, naquela manhã, se esborracharam contra uma montanha. No mínimo, 25 mil garimpeiros. Os principais garimpos eram, além do Lavrado, ao pé da serra da Mocidade, junto ao pico de Tabatinga, ou perto da serra Couto Magalhães, junto ao pico Redondo.
Mesma guerra

Eles pegavam o avião porque a terra não dá estradas e os rios não dão caminho. Muitas vezes o tempo fecha, os aviões são pequenos, mínimos, a gasolina acaba, caem na floresta e ninguém mais acha. Quando acha, estão comidos pelos bichos, só os ossos e pedaços do avião.

Só o Bradesco comprava 50 quilos de ouro por dia. No mínimo, tiravam 4 toneladas por mês. E ouro só de aluvião, nada de mina. A maioria saía ilegalmente e o garimpeiro correndo atrás da vida, da sorte, do sonho.

A guerra de hoje, na Raposa Serra do Sol, é a mesma de 88. Minério não dá em taba de índio nem em quintal de arroz. (Sábado, Venezuela.)

(Tribuna da Imprensa)

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